Por Percival Puggina
Tive oportunidade de acompanhar de perto, a partir de 1986, o surgimento da primeira representação política parlamentar do PT na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Desde os primeiros contatos, pude perceber que o novo partido apresentava três características marcantes: a) postura de agressiva desconfiança em relação a quem não fosse companheiro ou parceiro, b) desejo de ser visto como régua de supremacia moral que permitia aos seus tratar como eticamente inferiores todos os demais, c) desrespeito aos adversários, conduta grosseira e gratuita, entendida como inerente à “luta política”.
O que vi com meus próprios olhos e pude perceber em dezenas, se não centenas de debates em rádio e TV, levou-me muitas vezes a expor os interlocutores, desnudando as características antiéticas de seu comportamento. O que então era intelectualmente estimulante e divertido, o tempo cuidou de tornar assustador, fixando aquelas percepções iniciais numa moldura que diz muito sobre a política brasileira nos últimos 40 anos.
O querido e saudoso amigo Carlos Alberto Allgayer, com sabedoria vaticinava: “Ainda teremos que parar na Estação PT”. Era inevitável, de fato, a chegada ao poder das vestais do templo da estrela. Elas devolviam os jetons das convocações extraordinárias, entregavam ao partido boa parte de seus subsídios ou salários e sua carência material seria franciscana se não fosse arrogante.
A ascensão do petismo ao poder, nos municípios, nos Estados e no governo da União se fez mediante o rotineiro e persistente assassinato de reputações, expressão que deu título a um livro de Romeu Tuma Júnior. Antes da primeira eleição de Lula, por oito anos, o petismo se dedicou a destruir mediante sistemática pancadaria a imagem de quem o derrotou nas duas oportunidades anteriores. E nunca parou de fazer o mesmo com quem se pusesse no caminho.
A vida, porém, contou história diferente. O mensalão estourou aos dois anos do governo Lula I e a Lava Jato abriu suas válvulas dez anos mais tarde, durante o governo Dilma II, revelando a lama encoberta pelo longo e já surrado manto do poder.
Há, portanto, traços de comédia na denúncia do casal presidencial sobre o suposto roubo do mobiliário palaciano por seu antecessor (a velha “luta política” sem limites) e substituição de algumas dessas peças por produtos tão caros quanto luxuosos (a velha “régua moral” irrecuperavelmente destruída, como dá testemunho altissonante o coro das ruas).
No Brasil, periodicamente, voltamos ao passado, não para buscar as virtudes perdidas, mas em vã tentativa de reciclar o que caiu do caminhão. Isso até poderia ser virtuoso, se a reciclagem funcionasse.
Por Percival Puggina
Mas é infâmia de mais!... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares.
Castro Alves, Navio Negreiro
As perguntas que farei perturbam meu sono e são comuns ao cotidiano de milhões de cidadãos brasileiros. Como não ser assim, se a nação se dilacera e degenera, o sectarismo se empodera, a burrice impera, o crime prospera, a política se adultera, a Têmis se torna megera e os omissos somem ou dormem? Só eu acordo nas madrugadas pensando nesses motivos pelos quais 41% dos brasileiros (1), entre os quais 55% dos nossos jovens (2), só não desistem do Brasil por não terem condições financeiras de arrancar as folhas de um passado sem esperança e redigir seu futuro noutro lugar?
Os responsáveis por isso conseguem dormir? A nação se inquieta pela apatia de representantes omissos que tanto lhe custam. Como é insignificante, aliás, a relação custo/benefício, somados o mal que fazem e o bem que deixam de fazer! Como conciliam o sono e a culpa? A que destroços, a cupidez e a conveniência pessoal em condomínio com a injustiça reduziram tais almas? Elas simplesmente somem dos plenários quando, da tribuna, algum de seus pares lhes cobra pela apatia e a destruição das instituições!
No entanto, a realidade que vemos é sinistra. O Estado se agiganta perante a sociedade a que deveria servir. A juventude recebe uma educação de qualidade vexatória, últimos lugares nos rankings internacionais do PISA e da OCDE; a cultura nacional está degradada e o próprio QI dos brasileiros, por falta de estímulos, pode estar em regressão. Há décadas, os discípulos de Paulo Freire controlam e tornam cada vez mais sectária a educação nacional, transformando-a numa fábrica de ignorantes miseráveis, com as bênçãos do Estado. Quem escapa dessa máquina de moer cérebros prospera e vira réu no tribunal da desigualdade!
Resultado: chegamos a setenta e cinco milhões de seres humanos dependendo da assistência social do Estado. Do Estado? Sim, sim, o ente causador de todo esse mal aceita sem qualquer constrangimento posar de benfeitor. A pergunta que poucos fazem é: “Se o culpado não for o Estado, quem haveria de ser?”. Certamente a culpa não pode ser imputada a quem decide investir, correr riscos, gerar empregos, pagar salários e ser extorquido com impostos, taxas, contribuições. Essa pergunta derruba século e meio de mentiras sobre os sucessos do socialismo.
Eu quero o meu país de volta! Eu o vi antes, imperfeito, mas humano. Não era uma Suíça, mas era um país amável. O Brasil tinha boa reputação. Hoje é um país de má fama. Eu o quero moderno, mas com aqueles bens do espírito e naquele ânimo nacional que se comoveu e se moveu solidário quando as águas cobriram o abismo no Rio Grande do Sul. Eu quero de volta a energia inusitada que, durante oito anos, saudoso do “meu Brasil brasileiro, mulato inzoneiro”, me levou para cima dos carros de som a verberar corruptos, defender a liberdade e resistir à perdição de uma nação.
Impossível não evocar os versos finais de Navio Negreiro, esbravejados por Castro Alves, se vejo avançar o poder da Casa Grande, a se refestelar em folguedos e extravagâncias, enquanto garroteia direitos de cidadãos outrora livres.
(1)
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/polarizacao-politica-41-dos-brasileiros-mudariam-de-pais-se-pudessem-diz-quaest/
(2)
https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2022/08/17/55percent-dos-jovens-brasileiros-deixariam-o-pais-se-pudessem-diz-pesquisa.ghtml