Por Paulo Rabello de Castro (publicado no jornal O Estado de Minas em 16.12.23)
Desde o último 10 de dezembro, a Argentina tem um novo chefe de governo. Javier Milei é um economista de crença liberal, palestrante verboso e de língua solta, de personalidade polêmica, que ganhou a atenção dos eleitores, apesar de pouco versado na política partidária ou, talvez, por esse exato motivo. A Argentina virou uma peça à procura de Autor, quer dizer, o peronismo que a afundou não conseguia mais esconder sua responsabilidade direta pelas péssimas escolhas de políticas sociais que fez durante mais de meio século, resultando no empobrecimento e franca decadência de um país que já foi, disparado, o mais rico da América Latina e uma das mais prósperas economias do mundo até os anos 1950. Milei denunciou tal fracasso aos berros e, por isso, ganhou lugar de Autor dos próximos capítulos dessa história.
Não há nada de errado quando a imprensa, movida pelo cacoete do sarcasmo, apelida o programa de Milei, recém-anunciado, de "plano da motosserra". Em termos botânicos, nada menos do que uma poda radical é o remédio requerido para salvar uma árvore atacada pelos cipós sufocantes de uma planta parasita. Essa parasita é o peronismo. A questão, portanto, não é tanto sobre decidir o que fazer — como anunciado pelo novo ministro da Economia — mas, sobretudo, como radicalizar a poda da árvore, até deixar o país realmente livre dos parasitas da nação argentina. Milei parece ter, apesar de sua relativa inexperiência gerencial, perfeita noção de que o tempo não o favorece nessa missão de poda. O gradualismo será fatal para seu intento. Isso porque os peronistas, adversários do sucesso de Milei e do país, podem esperar sentados em seus cargos e sinecuras, aguardando o pagamento de salários no fim do mês. Com privilégios mantidos, o peronismo não tem por que se apressar. Enquanto isso, o público começará a pagar o pato de modo imediato. Os trabalhadores argentinos são os galhos sadios da árvore, hoje enredados e sufocados pelos tentáculos da parasita peronista. O povo já percebe a conta do sacrifício pela aceleração da inflação que devora seu poder de compra. Há um limite social, difícil de ser avaliado por antecedência, que determina a fronteira do apoio político ao presidente e aceitação de sua poda econômica. Se demorar a surgirem resultados, haverá um crescente arrependimento popular e até saudades da manipulação populista. Com desvalorização agressiva do peso argentino, alta dos preços básicos (energia e transporte) e dos preços da cesta básica, a população sofrerá um teste de fidelidade ao líder, difícil de ser sustentado para além de, digamos, o primeiro ano do governo.
Milei concorreu e venceu por deixar claras ao público suas duas imagens simbólicas, a do Leão (pela volumosa e desgrenhada cabeleira e pelo feroz rugido contra os políticos convencionais) e a do Louco (por ser assim apelidado na juventude, por alguma razão que desconhecemos). Mais uma vez, os eleitores não estiveram errados na escolha que fizeram, apesar de aparentemente despropositada. Escolher um leão — por sua ferocidade e assertividade — e um louco — pelo desatino útil de querer confrontar o monstro paralisante do país — são exatamente as qualidades necessárias, na dose certa, para melhorar as chances, ainda que baixas, de vencer tão assombroso adversário, o peronismo. Milei terá que agir como leão e como louco. As circunstâncias da Argentina de hoje demandam agressividade ao nível do imponderável. Contudo, ao conferirmos as primeiras medidas do novo líder portenho, não encontramos ali mais do que proposições de livro de economia, que podem até agradar a consultores em finanças, porque corretas, mas que não provocam combustão, nem trarão a quebra do paradigma peronista. Milei erra se não for muito mais fundo, cortando seu próprio salário e, daí para baixo, os de toda a estrutura de pessoal, de modo linear. E erra, por outro lado, se não defender gastos públicos em infraestrutura para manter empregada a maior quantidade possível de pessoas na base da pirâmide. Erra se não enfrentar também o tema dos investimentos, pois, na última linha, o que importa não é só cortar e podar, mas sobretudo, voltar a crescer, o mais rápido possível. Ele precisa verbalizar todos os dias que manterá acesa a esperança no crescimento e na geração de empregos, mediante uma equação sólida de investimentos, se possível entabulada também com o vizinho Brasil.
Infelizmente pouco se ouviu dessa vertente mais generosa no discurso inaugural. Por tal perspectiva, Milei chegou devendo o rugido mais alto que dele esperavam os argentinos. Sim, um rugido convincente, seguido, talvez, de um sorriso enigmático de Coringa
Por Percival Puggina
Mas é infâmia de mais!... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares.
Castro Alves, Navio Negreiro
As perguntas que farei perturbam meu sono e são comuns ao cotidiano de milhões de cidadãos brasileiros. Como não ser assim, se a nação se dilacera e degenera, o sectarismo se empodera, a burrice impera, o crime prospera, a política se adultera, a Têmis se torna megera e os omissos somem ou dormem? Só eu acordo nas madrugadas pensando nesses motivos pelos quais 41% dos brasileiros (1), entre os quais 55% dos nossos jovens (2), só não desistem do Brasil por não terem condições financeiras de arrancar as folhas de um passado sem esperança e redigir seu futuro noutro lugar?
Os responsáveis por isso conseguem dormir? A nação se inquieta pela apatia de representantes omissos que tanto lhe custam. Como é insignificante, aliás, a relação custo/benefício, somados o mal que fazem e o bem que deixam de fazer! Como conciliam o sono e a culpa? A que destroços, a cupidez e a conveniência pessoal em condomínio com a injustiça reduziram tais almas? Elas simplesmente somem dos plenários quando, da tribuna, algum de seus pares lhes cobra pela apatia e a destruição das instituições!
No entanto, a realidade que vemos é sinistra. O Estado se agiganta perante a sociedade a que deveria servir. A juventude recebe uma educação de qualidade vexatória, últimos lugares nos rankings internacionais do PISA e da OCDE; a cultura nacional está degradada e o próprio QI dos brasileiros, por falta de estímulos, pode estar em regressão. Há décadas, os discípulos de Paulo Freire controlam e tornam cada vez mais sectária a educação nacional, transformando-a numa fábrica de ignorantes miseráveis, com as bênçãos do Estado. Quem escapa dessa máquina de moer cérebros prospera e vira réu no tribunal da desigualdade!
Resultado: chegamos a setenta e cinco milhões de seres humanos dependendo da assistência social do Estado. Do Estado? Sim, sim, o ente causador de todo esse mal aceita sem qualquer constrangimento posar de benfeitor. A pergunta que poucos fazem é: “Se o culpado não for o Estado, quem haveria de ser?”. Certamente a culpa não pode ser imputada a quem decide investir, correr riscos, gerar empregos, pagar salários e ser extorquido com impostos, taxas, contribuições. Essa pergunta derruba século e meio de mentiras sobre os sucessos do socialismo.
Eu quero o meu país de volta! Eu o vi antes, imperfeito, mas humano. Não era uma Suíça, mas era um país amável. O Brasil tinha boa reputação. Hoje é um país de má fama. Eu o quero moderno, mas com aqueles bens do espírito e naquele ânimo nacional que se comoveu e se moveu solidário quando as águas cobriram o abismo no Rio Grande do Sul. Eu quero de volta a energia inusitada que, durante oito anos, saudoso do “meu Brasil brasileiro, mulato inzoneiro”, me levou para cima dos carros de som a verberar corruptos, defender a liberdade e resistir à perdição de uma nação.
Impossível não evocar os versos finais de Navio Negreiro, esbravejados por Castro Alves, se vejo avançar o poder da Casa Grande, a se refestelar em folguedos e extravagâncias, enquanto garroteia direitos de cidadãos outrora livres.
(1)
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/polarizacao-politica-41-dos-brasileiros-mudariam-de-pais-se-pudessem-diz-quaest/
(2)
https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2022/08/17/55percent-dos-jovens-brasileiros-deixariam-o-pais-se-pudessem-diz-pesquisa.ghtml