POSOLOGIA E MODO DE USAR
No texto a seguir, sobre a propalada -LIBERDADE DE EXPRESSÃO: POSOLOGIA E MODO DE USAR, o pensador Ronald Hilbrecht, para melhor reflexão, inicia separando 1- AQUILO QUE CONSIDERA ADMISSÍVEL; e, 2- O QUE NÃO PODEMOS ACEITAR. Ronald lembra que a Austrália instituiu a primeira agência governamental do mundo dedicada a manter as pessoas seguras nas redes sociais ao lidar com conteúdos agressivos, violentos e discurso de ódio. Atendendo a uma demanda judicial desta agência, um juiz federal ordenou à plataforma X a retirada de um vídeo de um Bispo sendo esfaqueado em uma igreja em Sydney. O conteúdo foi bloqueado em toda a Austrália, mas a ordem de bloqueio se estende também ao resto do mundo.
PODE???
- PODE O GOVERNO DE UM PAÍS CENSURAR CONTEÚDOS, inclusive em OUTROS PAÍSES? Questão talvez mais grave ocorre aqui no Brasil, onde um ministro do STF pretende multar a plataforma X por permitir que pessoas com perfis bloqueados (diga-se, censurados) no Brasil estejam participando de transmissões ao vivo produzidos por terceiros nos EUA e transmitidas no Brasil.
- PODE O GOVERNO DE UM PAÍS DEMANDAR o bloqueio de perfis e participação de “investigados” domésticos nas redes sociais de outros países?
PALCO DE DEBATES
A complicação de hoje em dia decorre do fato de que a antiga praça pública, idealização do palco de debates e trocas de ideias e de informação, era mais limitada a temas locais. Hoje, COM O ADVENTO DA INTERNET E DAS REDES SOCIAIS, este espaço público de discussão se tornou global. Não apenas o escopo dos temas e das discussões aumentou, mas também aumentaram a participação e a diversidade de formas de levar adiante uma discussão.
Sociedades diferentes resolvem o problema do que e como conversar de formas diferentes: na União Europeia (EU), por exemplo, existe legislação específica contra discurso de ódio, enquanto que na perspectiva americana, condicionada à primeira emenda constitucional, a ideia de liberdade de expressão é mais amplamente protegida. Na UE, o discurso de ódio é definido como o incitamento público à violência ou ao ódio com base em certas características, incluindo raça, cor, religião, descendência e origem nacional ou étnica. Já nos EUA, a jurisprudência sobre a primeira emenda constitucional estabelece que o discurso de ódio só possa ser criminalizado quando incitar diretamente atividades criminosas iminentes ou consistir em ameaças específicas de violência dirigidas contra uma pessoa ou grupo.
LIBERDADE DEPOIS DA EXPRESSÃO
Em outros países e regiões do planeta, restrições adicionais à liberdade de expressão se aplicam e transformam em crimes, por exemplo, a adoção de religiões distintas daquela permitida (passível de punição com pena de morte, inclusive) e o ato de criticar o governo (chamado de difamação ou calúnia sediciosa). É conhecida uma antiga piada soviética, onde um ouvinte da fictícia Rádio Armênia pergunta para o radialista qual era a diferença entre os EUA e a URSS, pois ambas as constituições garantiam liberdade de expressão. O radialista responde que a diferença é que nos EUA TAMBÉM SE GARANTIA A LIBERDADE DEPOIS DA EXPRESSÃO.
Na nossa praça pública virtual, participam pessoas oriundas de diversas culturas e com estilos de discussão diferentes, que podem ser proibidos ou livres em locais diferentes. Na torre de Babel das redes sociais, o conceito de liberdade de expressão ficou combalido. Não estamos mais discutindo temas de interesse com nossos vizinhos, onde a civilidade é predominante pois temos que conviver uns com os outros no dia seguinte.
IDEAL DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO É UM IDEAL DE LIBERDADE
É importante entender claramente a centralidade da liberdade de expressão na vida em sociedade, pois é dela que emanam todas as nossas outras liberdades. Em seu livro “Desenvolvimento como Liberdade”, Amartya Sen argumenta que é praticamente impossível haver pobreza extrema com inanição por falta de comida quando existe liberdade de imprensa, que é uma das características essenciais da democracia, uma vez que informação a respeito se espalha criando pressão contra a manutenção dessa situação.
Existe, então, uma conexão direta entre liberdade de expressão, e de imprensa, com o direito à vida e à liberdade de forma geral. David Hume, filósofo escocês amigo de Adam Smith, argumentou que a liberdade de imprensa permitia que “todo o saber, a inteligência e o gênio da nação” fossem “usados ao lado da liberdade e que todos fossem animados em sua defesa”. Afirmou ainda que “tal liberdade é acompanhada de tão poucos inconvenientes que pode ser reivindicada como um direito comum da humanidade”.
A invenção da prensa móvel por Johannes Gutemberg em 1439 foi uma revolução na liberdade de expressão e de ideias, pois permitiu o registro de ideias, sua disseminação e o advento da ciência e tecnologia, além de minar o controle que os governos e a igreja detinham sobre a população. Por outro lado, no mundo islâmico, a prensa móvel foi apenas plenamente permitida quase quatro séculos depois. Lá, o repúdio à imprensa escrita significou a estagnação na matemática e nas ciências e a perda da posição do mundo islâmico como centro líder da cultura.
Como Jared Rubin escreve em “Rulers, Religion, and Riches: Why the West Got Rich and the Middle East Did Not”, “O fracasso dos Otomanos na adopção da imprensa escrita é uma das grandes oportunidades perdidas da história econômica e tecnológica. Na Europa Ocidental, a imprensa proporcionou uma série de novas oportunidades econômicas e educacionais que eram simplesmente impensáveis antes da imprensa.” Como se vê, cerceamento à liberdade de expressão e de imprensa pode levar a uma estagnação cultural e econômica, além de maior repressão política e religiosa.
Ocorre que o IDEAL DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO É UM IDEAL DE LIBERDADE, onde todos são livres para expressar suas opiniões. Entretanto, liberdade de expressão é também uma questão política, de relações de poder, e graças ao advento da internet, dos celulares e das redes sociais, restrições políticas à liberdade de expressão começaram a ser subvertidas. Mais e mais pessoas adquiriram o direito de se expressar livremente, muitas vezes ao arrepio do poder político constituído que ficou mais exposto a críticas e avaliações negativas da sociedade.
John Stuart Mill, em sua obra clássica, “Sobre a Liberdade”, argumenta que deveríamos ser livres para dizer qualquer coisa, “por mais imoral que possa ser considerada”. Seu critério central é a busca pela verdade. Muitas declarações falsas podem conter um grão de verdade, e mesmo uma declaração totalmente falsa nos desafia a reafirmar a nossa posição. É, portanto, uma forma de manter afiada a boa espada da verdade, se você a confronta constantemente com outros argumentos.
Embora liberdade de expressão permita discursos ruins e ofensivos, ela não se limita a isso e deve lidar com o problema dos temas difíceis ou sensíveis. Podemos discutir quaisquer temas sem estarmos sujeitos ao poder de veto dos assassinos, como aqueles que assassinaram os cartunistas franceses do Charlie Hebdo, anos atrás? Podemos discutir outros temas como a cultura do cancelamento, sem sofrermos o poder de veto dos histéricos, que podem, por exemplo, cancelar a vida profissional de um cidadão qualquer por ter sido fotografado, fora de contexto, fazendo gesto que foi mal interpretado? Ou ainda o veto dos ofendidos, onde basta alguém se sentir ofendido para que certas ideias ou pontos de vista sejam proibidos, não por governos, mas por coerção social de minorias? Liberdade de expressão, para que possibilite a emergência da verdade a partir de ideias ruins e defeituosas, deve estar protegida contra o poder de veto de certos grupos.
Liberdade de expressão funciona melhor, como depurativo da verdade, quando conseguimos exercê-la com aquilo que se chama de “civilidade robusta”. Trata-se do princípio básico que diz que devemos ser livres para dizer ou fazer qualquer coisa, desde que não prejudiquemos os outros. Considere então todo o lixo de argumentos que estão presentes nas redes sociais, incluindo aí discurso de ódio e todo tipo de desinformação e fake news. Como se diz por aí, todo o esgoto da internet está prestes a transbordar pelo seu celular. A civilidade robusta não se presta a impedir discursos ruins ou ofensivos, mas a evitar danos, como a presença de ameaça de violência física ou psicológica.
A civilidade robusta prega que discursos ruins e ofensivos devem ser contidos no debate público, onde a sociedade pode e deve denunciá-los e criticá-los. O estado não deve agir como se fosse nossas mães, dizendo para as crianças o que pode e o que não pode ser feito ou dito. Adultos podem aprender a se guiar pela civilidade robusta e deixar para que o estado apenas lide com discursos perigosos, que exponham outras pessoas a risco. Em outras palavras, o tal do discurso de ódio, enquanto apenas discurso, deve ser combatido pela sociedade, expondo-o com denúncias, críticas e argumentos racionais.
Liberdade de expressão, como elemento central na constituição de nossas outras liberdades, precisa ser preservada com a atuação firme da sociedade complementada por atuação do estado, apenas onde necessário. Neste mundo novo de discursos sem fronteiras da internet e redes sociais, onde nossos interlocutores não são mais os vizinhos de outrora e não mais compartilham necessariamente os mesmos valores e ideais, manter viva a depuração de ideias e a busca incessante pela verdade pela manutenção da nossa liberdade de expressão é o grande desafio que devemos enfrentar.
P.S. Para possibilitar melhor reflexão sobre o tema, que é importantíssimo e praticamente inesgotável em suas nuances, gostaria de sugerir a leitura de dois livros, um vídeo e um site: