Espaço Pensar +

A ALMA DO NEGÓCIO - 28.10.22


Por Percival Puggina
  
         Uso novamente o vocabulário da ministra Cármen Lúcia. “Com todos os cuidados”, devo dizer que, assim como nunca vi uma composição do STF tão militante, tão politizada, tampouco vi um TSE como esse.
 
         Por maioria, os ministros do tribunal eleitoral cuidaram de apagar da biografia de Lula seus negócios, seus tempos no cárcere, seus afetos e afagos nas relações internacionais. O Foro de São Paulo voltou a ser teoria da conspiração... É o Lulinha visto pelos olhos maternos. Ou da Folha, ou do IPEC, ou do bispo de Aparecida. Entende-se: alguns dos ministros que atuam no eleitoral são, também, do STF, corte que lhe concedeu o pacote de benefícios sem os quais ainda estaria morando em Curitiba.
 
          Tratou-se, portanto, da operação final. O nascimento de um homem novo, uma alma zero quilômetro, de quem só se pode mencionar o futuro. Não tem a consciência de São Dimas, nem passa pelos controles de São Pedro, mas quebra bem o galho para uma campanha eleitoral que, em condições normais, seria impossível.
 
         Travada como está sendo, a disputa ganhou uma característica ímpar – digamos assim. Nada se pode dizer sobre aquilo que Lula de fato foi no seu tempo de governo e de influência sobre seu partido. Estão vedadas as referências a quaisquer culpas. Logo ele – logo ele! – se tornou o candidato mais “inatacável”. Ao mesmo tempo, a alma do negócio, na propaganda do PT, vem do fígado, cujos fluidos atribuem a Bolsonaro um catálogo pré-fabricado de adjetivos que, sabidamente, não se fizeram visíveis nos quatro anos que preside a República. E aí, pode.
 
         Alguém dirá, como a ministra já mencionada, que se trata de uma situação “excepcionalíssima”, embora seja excepcionalíssimo, esdrúxulo, desconcertante quase tudo que me chega ao conhecimento como decisão tomada e imposta por nossas altas cortes em matérias com efeito político. 
 
         Mais uma vez, “com os devidos cuidados”: que o novo Congresso assuma e chegue ao fim esse tormento, essa combinação sinistra de atividade policial, acusatória e judicial sob o mesmo malhete. É à falta de liberdade e à sensação de impotência, com os abusos daí decorrentes, entre eles o desprezo à sociedade, que devemos atribuir toda a animosidade instalada no país. Ela emana dos andares superiores da República.


Leia mais  

COM TODOS OS CUIDADOS - 25.10.22


Por Percival Puggina

 

 Valho-me do vocabulário da ministra Cármen Lúcia para dizer, “com todos os cuidados”, que o excesso de poder não é remédio. É veneno. Veneno brabo, de antídoto difícil em qualquer circunstância. As tiranias são sua sistemática evolução.

O excesso de poder tem caracterizado a ação dos nossos tribunais superiores, fazendo-os cair no desagrado de ampla maioria da sociedade brasileira, notadamente entre os que mantêm pela Liberdade profundos sentimentos de afeto. Sim, eu sei, afetos não fazem necessariamente o bom Direito, mas, cá entre nós, menos ainda o produzirão os desafetos, quando falamos de indivíduos livres e de liberdade. E as vítimas dos desafetos – coitadas! – andam por aí, ou no exterior, com marcas na paleta.

O bom estado de direito tem mecanismos para atenuar excessos de poder. Nossos constituintes foram zelosos nisso porque muitos deles experimentaram efeitos de sua escassez durante os governos militares. Exatamente por isso, “com todos os cuidados”, diante do que aprendi do tempo passado, não posso omitir a advertência que aqui faço. 

Valho-me, uma vez mais, de palavras da ministra Cármen Lúcia para perguntar: num passo a passo de medidas “excepcionalíssimas”, é para a censura que estamos “desbordando”? Não! Estamos “desbordando ou configurando” uma tirania que já sufoca tantas vozes enquanto arremeda, sem qualidade literária, o ministério da verdade descrito por George Orwell. A “higidez e a segurança” dos direitos individuais estão comprometidas e isso deveria fazer com que fossem “reformuladas imediatamente” essas periódicas emanações totalitárias.

Tiranos só têm urgências. Para eles, tudo tem que ser feito ao seu modo e imediatamente. Daí os prazos com a exata medida da impaciência. Daí a “colegialidade” transformada em conivência. Daí a concentração de poderes, fazendo do tirano verdadeira esponja de competências, prerrogativas, instrumentos, recursos e tudo mais que necessário seja.

Já seria ruim só por ser assim. Mas fica pior quando se vê instalada em setores da sociedade, como consequência, verdadeira dispersão sobre o que sejam estado de direito, democracia e liberdade. Por isso, é preciso drenar os excessos absorvidos pela esponja para restaurar, "com todos os cuidados", limites ao uso destemperado do poder.  


Leia mais  

ORÁCULOS ULTRAJANTES - 24.10.22


Por Guilherme Baumhardt

 

O ano é 2023. Para agilizar a vida jurídica do país, o Brasil cria um novo serviço, um aprimoramento do Supremo Tribunal Federal. Chama-se Tribunal Federal Reverencial dos Oráculos Ultrajantes. Ou, na sigla, TFERROU. Funciona por telefone, via 0800. O objetivo é agilizar o sistema judiciário, cortando instâncias, recursos, investigações, inquéritos. O novo órgão anula polícias e Ministério Público. Para isso, onze ungidos (e seus asseclas) opinam e decidem sobre absolutamente tudo. Das questões mais comezinhas até o mais polêmico dos casos. Na central de atendimento, uma das servidoras recebe uma chamada:

- TFERROU. Em que posso ajudar?

- Boa tarde. Meu nome é José e acabei de brigar com a minha esposa.

- Qual a razão da discórdia, senhor?

- O arroz e o feijão.

- Como assim?

- Eu gosto de colocar primeiro o feijão e depois o arroz. Minha mulher implica comigo. Diz que deve ser o contrário.

- Pesquisei aqui e vejo que ainda não há jurisprudência sobre o caso. Mas estou abrindo um chamado para um dos oráculos. Em cinco minutos, no máximo, teremos uma resposta.

- Espero na linha?

- Sim, aguarde.

Não mais do que três minutos se passam.

- Senhor, o feijão é o preto?

- Sim.

- Aguarde mais um pouco.

Nova espera até que o atendimento seja retomado.

- Senhor, temos uma decisão. O senhor receberá um WhatsApp, mas já posso adiantar o teor agora.

- Por favor. Estou ouvindo.

- No entendimento do nosso ungido Stálin Morales a situação é um pouco mais delicada, mas há uma resolução.

- O que faço?

- Para casos assim, vale a legislação das cotas. Há o entendimento de que feijões pretos são oprimidos e não recebem o mesmo tratamento dispensado ao arroz.

- Cotas?

- Sim. Cotas.

- Mas eu sou negro, minha família é negra e aqui em casa alguns concordam e outros não concordam com esse negócio de cotas. Mas posso garantir que ninguém vê qualquer relação entre cotas e feijão preto.

- Isso é um problema seu e da sua família. Trabalhamos dentro do rigor da lei. Com muito critério, sempre tentamos buscar um fato já existente antes da tomada de decisão. Neste caso, há o entendimento que temos uma dívida histórica com o feijão. A hora de reparar é agora.

- Bem, então o que eu faço?

- O senhor deve colocar, no mínimo, 50% do feijão sobre o arroz. O restante fica ao lado. Nunca abaixo. Informe sua esposa. Se ela insistir, são cinco anos de reclusão, sem direito à fiança.

- E quando ela fizer feijão-fradinho? Ou feijão vermelho?

- Para o vermelho é a mesma regra. É um feijão que remonta aos indígenas, que têm pele vermelha. Também temos uma dívida histórica com eles. Quanto ao fradinho, recomendamos não usar.

- Mas é uma delícia. Adoro feijão-fradinho.

- Frade lembra religião, senhor. E, para religiões, nossa inspiração agora vem da Nicarágua. Então nada de feijão-fradinho.

- Meu Deus...

- Senhor?

- Sim.

- Religião, lembra? Nicarágua. Vou fingir que não ouvi para não termos problemas.

- Ah, e não tem como voltar atrás, não? Gosto muito de feijão-fradinho. E esse negócio de dar cadeia me assustou. Não quero ver minha mulher presa. E ela cozinha tão bem.

- Agora não há mais volta.

- Jesus, Maria, José... Opa! Desculpa!

- Senhor! Religião! Não pode!

- Para que eu recorro?

- Hahahahahahaha. Peço desculpas pela gargalhada. Não, não há a quem recorrer.

- Como chegamos a isso?

- Em quem o senhor votou na eleição passada?

- Eu votei naquele que foi solto por vocês. Disseram que ele era inocente. Depois vi que não era bem assim. Ah, se arrependimento matasse...

- O senhor gostaria de abrir uma nova consulta para casos assim?

- Qual?

- Morte por arrependimento. Nossos oráculos ultrajantes podem ajudar a tomar uma decisão. Em no máximo cinco minutos temos uma resposta. Chega no seu WhatsApp.

- Não. Melhor deixar assim.

- Por favor, fique na linha, e ao final da chamada dê uma nota de 1 a 5 para o serviço do TFERROU.

- E se eu não der uma nota muito boa?

- Eu não faria isso, senhor.


Leia mais  

Graças à censura do TSE, o processo eleitoral está irremediavelmente sujo - 21.10.22


Por J.R. Guzzo

A censura é um câncer e, sendo câncer, pode gerar metástase – a infecção sai do lugar onde começou e começa a invadir, passo por passo, o organismo inteiro. É o que está acontecendo com os atos de repressão do ministro Alexandre Moraes e seus imitadores no Tribunal Superior Eleitoral contra órgãos de imprensa. Dia após dia, violam de maneira cada vez mais maligna a liberdade de expressão, estabelecida com palavras indiscutíveis na Constituição Federal do Brasil - e proíbem os veículos de comunicação de publicarem qualquer coisa que o ex-presidente Lula, candidato nas eleições do dia 30 de outubro, não quer que seja publicada. A primeira agressão foi contra a Gazeta do Povo, censurada pelo TSE por informar, com base em fatos escandalosamente públicos, que Lula e o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, são aliados políticos e admiradores um do outro. Lula acha que isso pode lhe custar votos. Exigiu então que a Gazeta não publicasse nada a esse respeito e foi atendido na hora pelo TSE; sempre é. A partir daí o câncer se espalhou. Acaba de infectar a rádio Jovem Pan, e pelos mesmos motivos: levar ao ar notícias sobre fatos verdadeiros cuja divulgação Lula não admite. A rádio está censurada pelo TSE por falar dos processos e das condenações de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro. É como se não tivesse existido a Lava Jato, ou a sua prisão durante 20 meses em Curitiba, ou a devolução em massa de dinheiro roubado. A Jovem Pan não pode falar nada disso.

 

Nunca se viu numa eleição brasileira, nem mesmo nas eleições consentidas e bem-comportadas feitas durante o AI-5, atos de ditadura como os que estão sendo praticados neste momento pelo alto Poder Judiciário. O processo eleitoral, por conta disso, está irremediavelmente sujo; qualquer que seja o resultado, a dupla STF-TSE conduziu durante toda a campanha um processo de destruição da democracia que não pode mais ser consertado. A autoridade eleitoral abandonou, sem maiores preocupações com aparências, a sua obrigação elementar de ser imparcial – está agindo abertamente a favor de um candidato, o ex-presidente Lula, contra o candidato adversário, o presidente Jair Bolsonaro. Montou-se, aliás com a colaboração da maior parte da mídia, uma colossal operação de fingimento, através da qual STF-TSE pretendem salvar o Brasil do “autoritarismo” - e se servem desta mentira para violar a Constituição, liquidar liberdades públicas e individuais, e impor a censura em favor do seu candidato.

 

A metástase transbordou do seu foco inicial não apenas quanto aos órgãos de imprensa perseguidos pelo TSE, mas também em relação aos assuntos censurados. Alexandre Mores e seus associados no TSE proíbem a exibição de vídeos em que Lula diz ”ainda bem” que “a natureza” nos mandou a Covid – assim as pessoas aprendem a “importância do Estado”. É proibido dizer que Lula foi o mais votado nas penitenciárias. Também não pode dizer que o PT votou contra, na prática, o Auxílio Brasil proposto no Congresso pelo governo – o partido negou o pagamento parcelado dos precatórios, ou dívidas da União não pagas, e é daí que vem o dinheiro para pagar o auxílio. Nem o ex-ministro Marco Aurélio, do próprio Supremo, pode falar. Os ex-colegas proibiram que ele diga que Lula não foi absolvido, em nenhum momento, pelo STF - apenas teve os seus processos penais “anulados”, sem qualquer menção a provas ou fatos, o que não tem absolutamente nada a ver com “absolvição”. É, em todo o caso, uma interpretação dele como jurista, absolutamente legítima e legal. Mas o ex-ministro foi proibido de falar. E por aí se vai, com multas de 25.000 reais por dia para veículos de imprensa ou para jornalistas que não obedecerem de imediato as ordens da censura – um abuso sem precedentes na história da justiça brasileira.

 

Nenhum dos atos de censura do TSE, pelo que ficou provado nas suas decisões, proibiu a publicação de notícia falsa – como, hipocritamente, Moraes e colegas vêm dizendo que era a sua intenção, antes ainda da campanha eleitoral começar. Agora se vê que só foi proibida, como sempre quiseram eles, a publicação de informações verdadeiras. Estas sim, são e sempre foram o objetivo real da repressão ditatorial mais flagrante que o país já viu desde a abolição do AI-5. A ditadura do Judiciário está proibindo dizer a verdade no Brasil.


Leia mais  

O DIREITO DE FALAR


Por  José Paulo Cavalcanti Filho
 
A primeira e mais fundamental liberdade é a de consciência. E dela decorrem duas consequências principais. Uma retrospectiva, no passado, que é não haver censura. Outra prospectiva, no futuro, que é o direito de poder dizer o que se pensa. Com limites definidos, em cada sociedade, por suas constituições. Daí vem a Liberdade de Expressão, base de todas as verdadeiras democracias. Como dizia Paul Éduard (Liberdade), em belo verso, “Nasci para te conhecer/ Liberdade”.
 
O ministro Alexandre de Moraes, que dirige as eleições como presidente do TSE, teria o dever de garantir um pouco de paz nessa quadra histórica tão conturbada. Mas “não contribui para isso”, palavras do jurista Yves Gandra. E prefere a radicalização. Em cada gesto. Por ter um “problema na cabeça” ‒ segundo seu colega no Supremo, ministro Marco Aurélio. Ou por se acreditar ungido, pelos deuses, na missão redentora de salvar o Brasil. “A alma humana é um abismo”, disse Pessoa (texto sem data).
 
Entre muitos absurdos, conduz um inquérito absolutamente ilegal. Qualquer estudante de Direito sabe que cabe ao Supremo só julgar, art. 102 da Constituição. Já investigações, está em outro artigo (129), devem ser feitas pelo Ministério Público. Apesar disso, inventou esse malfadado inquérito. Em decisão monocrática ‒ a única Corte Constitucional, do planeta, em que isso ocorre. Sem regra que permita isso. Nem mesmo o art. 43 do Regimento Interno ‒ que, ainda quando por absurdo fosse invocado, exigiria iniciativa do presidente do Supremo. O que não ocorreu. Agora, vítimas são cidadãos que conversavam em seus celulares. Já sofreram busca e apreensão. E o mais não se sabe, com ele tudo é possível. Sem praticar nenhum ato concreto que pudesse importar riscos à Democracia. E mesmo sem ter, qualquer deles, Foro Privilegiado. O que torna o Supremo incompetente, sem dúvida possível, para processá-los.
 
Mais assustador, nessas demonstrações de poder absoluto, é o silêncio cúmplice. Dos seus colegas do Supremo. E de tantos que se consideram Combatentes da Democracia e permanecem, todos, calados ‒ OAB Federal, ABI, Sindicatos de Jornalistas, CNBB, professores de Direito, autores e subscritores de Cartas em favor da Democracia. Como se a Liberdade de Expressão estivesse a serviço de alguma ideologia. Ou pudesse vir a ser sacrificada por interesses eleitorais. É constrangedor.
 
José Paulo Cavalcanti Filho é membro da Academia Brasileira de Letras.


Leia mais