Por Percival Puggina
Em meu primeiro emprego, recém-graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, tive que redigir proposta técnica para um determinado projeto com impacto urbano. Pouco depois de entregar o trabalho, o diretor, um engenheiro experiente, me chamou para conversar e me disse: “Você escreve muito bem, mas trabalhos técnicos não comportam adjetivação. Retire os adjetivos e retorne”. Aprendi a lição e durante quase duas décadas nenhum texto saiu do escritório sem passar por mim.
Lembrei-me dela ao ler trechos da decisão com que o ministro Dias Toffoli anulou, monocraticamente, o acordo de leniência (delação premiada) da Odebrecht. A abundância dos adjetivos, as analogias e o tom de discurso político gritam sua incompatibilidade com o que a sociedade pode esperar de uma decisão judicial de tal gravidade. Palavras e expressões como conspiração, armação, conluio, ovo da serpente, pau de arara do século XXI cabem em certas colunas de O Globo ou da Folha, mas preocupam os cidadãos atentos, principalmente quando usadas por um ministro do Supremo para atribuir à Lava Jato o “objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”. Nem mesmo o ministro Fachin foi tão longe.
As pessoas com quem falo sobre nosso amado país expressam sentimentos semelhantes aos meus. Ora o Brasil parece um carro sem freio e ali adiante haverá uma catástrofe, ora parece descer a cada dia um degrau da escada sinistra do infortúnio. Na primeira situação, haverá um ponto final; na segunda, talvez não, porque sempre será possível piorar um pouco. Esta é a sensação mais frequente pois o noticiário de cada dia nos informa que, de fato, descemos ou desceremos mais um degrau do impensável destino. Algo de que não podíamos sequer cogitar aconteceu.
Tem sido tão vertiginosa a velocidade com que o país se deteriora que a memória dos acontecimentos some com a poeira que levantam, mas ao final de cada dia, no balanço dos fatos, vemos crescer o abismo entre a sociedade e o Estado.
A assim chamada tribuna de honra do desfile do dia 7 proporcionou imagem viva e colorida desse isolamento. Ali estava a “democracia” pela qual se empenharam com tanto ardor os ministros do STF e do TSE. Ali estavam estampadas as consequências do intenso trabalho das redações e de seus digitadores a soldo. Ali se concentravam os frutos omissão de uns e da intromissão de outros, da censura e do cerceamento à liberdade de expressão jurado desde 2019. Ali também estavam representados os contemplados pela anulação das provas dos crimes cometidos. E a cidadania, a lesada de sempre? Ausente, como vem sendo mantida, mas por vontade própria.
Dos males possíveis, o maior será aquele em que a nação facultar a si mesma o abandono à própria sorte. Resistir sempre.
Por Percival Puggina
Estava imaginando o que passou pela cabeça de um cidadão cubano quando tomou conhecimento da lista de convênios que Lula e sua comitiva assinaram com o governo de seu país na recente visita a Havana, espécie de Jerusalém do comunismo decrépito.
Há alguns anos, época em que muito debati com representantes dos partidos de esquerda, em especial membros de um muito ativo movimento de solidariedade a Cuba, ouvi deles que no Brasil existem miseráveis ainda mais miseráveis do que em Cuba. Eu os contestava dizendo que ninguém desconhecia a pobreza existente aqui, mas era preciso observar uma diferença essencial entre a situação nos dois países. Aqui, os pobres convivem com carências alimentares por falta de meios para adquirir alimentos; em Cuba, mesmo que o povo dispusesse dos meios, não teria o que adquirir porque a economia comunista, como se sabe, é improdutiva.
Esse é um dos motivos, dentre muitos outros, para que ninguém caia na balela de que o comunismo é bom para “acabar com a pobreza”. O que aconteceu com o setor açucareiro dá excelente exemplo. No final dos anos 1960, a URSS se dispôs a comprar 13 milhões de toneladas anuais de açúcar cubano, a partir da safra 1969/1970. O país produzia entre três e quatro milhões de toneladas, com tendência decrescente. Muitas atividades da ilha foram suspensas e comunistas do mundo todo foram trabalhar naqueles canaviais. Conseguiram sete milhões de toneladas.
Trinta anos mais tarde, quando fui a Cuba pela segunda vez, a safra 2002/2003 fora tão escassa que Cuba importava açúcar! Depois, a produção andou pela casa dos dois milhões de toneladas e no ano passado bateu em meio milhão. A história do açúcar é a história da balança comercial e do consequente déficit cambial cubano. Daí o pagamento não em dólares, mas em charutos ou “outras moedas” ... Daí também o motivo pelo qual, se você excluir estrangeiros residentes, turistas, membros da elite partidária e militar, a carência é generalizada.
Imagine então um cidadão cubano sendo informado pelos órgãos de divulgação do estado de que seu país firmara acordo com o Brasil sobre trocas de tecnologia e de cooperação técnica em agricultura, pecuária, agroindústria, soberania e segurança alimentar e nutricional, mudas, bioinsumos e fertilizantes, agricultura de conservação, agricultura urbana e periurbana; produtos alimentares prioritários para consumo humano e animal, reprodução de espécies agroalimentares prioritárias; uso eficiente da água, cadastro e gestão da terra e abastecimento agroalimentar. E mais biotecnologia, bioeconomia, biorrefinarias, biofabricação, energias renováveis, ciências agrárias, clima, sustentabilidade, redes de ensino e pesquisa (*).
Não sei se está previsto, mas se em tudo isso e em outros convênios também firmados, não ligados à produção de alimentos, o Brasil enviar cheque, pode escrever aí: vem charuto.
*Condensado de matéria da Agência Brasil – EBC, íntegra em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-09/brasil-assina-acordos-de-cooperacao-em-varios-setores-com-cuba.